Uma guinada do real ao fictício

por Henrique Rodrigues


        O crítico norte-americano Harold Bloom, no seu livro "O cânone ocidental", afirma que a literatura não funciona como um elemento de elevação das pessoas. Que nas páginas dos clássicos há violência, ganância, transgressões, excessos, enfim, todo tipo de estímulos contrários às convenções estabelecidas para que haja uma harmonia social, e que por isso devem ser observados predominantemente pela via estética.
        Tais considerações podem não ser suficientes para abarcar o papel que a literatura vem exercendo nos últimos tempos. A ficção tem se alimentado não só do fato histórico, mas também dos pequenos acontecimentos que permeiam o cotidiano, que por sua vez contêm uma rede de possibilidades de leituras. É o que a carioca Cecilia Vasconcellos faz em "Guinada" (Rio de Janeiro: Record, 2001. 256 págs.), seu primeiro romance. A autora, talvez por possuir experiência em literatura infanto-juvenil, consegue habilmente trabalhar com o poder que os livros exercem nos leitores, principalmente os ainda em formação.
        A história se ambienta numa fazenda, onde a protagonista Sylvia foi terminar um livro e acaba se envolvendo com varias pessoas, especialmente o dono da propriedade, com quem tem um romance, e Valnice, uma menina tímida que guarda um segredo. A chegada da escritora, uma figura estranha ao meio rural, caracterizada principalmente pela curiosidade, faz com que a vida de todos os personagens dê reviravoltas, ou guinadas, como sugere o titulo.
        Na capa é possível visualizar uma presença de olhar cético e protetor, num contexto que sugere ao mesmo tempo tragédia, fantasmagoria e redenção. A escolha pela narrativa em primeira pessoa dá a protagonista uma posição de catalisador da guinada por que passa cada personagem, realizando em parte o desejo que todos têm de tornar o mundo mais digno. Assim, a narradora se converte em heroína, mas sempre consciente de que tem como armas as palavras, como no auxílio que ela presta à menina Valnice, cuja descoberta da literatura acaba assumindo uma dimensão de conquista da própria realidade.
        Sendo a protagonista também uma escritora, não deixa de refletir sobre as questões que envolvem o seu ofício, como o isolamento necessário: "O silêncio e a imobilidade, tão aprazíveis na solidão, tornam-se insuportáveis na presença de estranhos, e estranhos há por toda parte, até dentro de nós." Daí que em várias ocasiões a narradora tenha se desdobrado em personagens que se misturam com as pessoas reais. Tem-se, portanto, um romance em três camadas: a nossa, a de Sylvia, e a que ela cria. Há explicitamente uma comunhão entre Cecilia e a narradora. Ambas escreveram seus livros numa fazenda, dando a impressão de que "Guinada" foi o livro escrito por Sylvia, estabelecendo um jogo entre o real e o fictício. Deve-se, porém, ter o cuidado de não se ler o livro como uma obra autobiográfica, pois embora alguns fatos sempre sejam transferidos da experiência pessoal para a criação literária, o livro emerge como autêntica ficção. Aliás, é nesse entrelugar, nesse embate, que reside a sua grandeza.
        Este livro de Cecilia Vasconcellos e também um romance que denuncia vários problemas da classe agrícola: invasões dos sem-terra, politicalhas, carência de recursos, desmatamento e violência. É sobretudo uma visão de quem não se conforma, e que no fundo busca fazer a sua parte para que o país também dê uma guinada.